Sunday, 23 September 2007

Clerks II

de Kevin Smith


Não sou o maior fã do Kevin Smith. Não é um bom realizador, os diálogos podem ser bons (e são) mas os argumentos na sua maioria têm uma estrutura péssima e facilmente cai no facilitismo e no "eu e os meus amigos a fazer um filme". Mas tenho o maior dos afectos pela sua primeira obra, Clerks (1994), não só pelo esforço inumano de Smith e Mosier para terminar aquela produção de 23.000 dólares como também admito ter respeito por filmes que são feitos com uma paixão superior só pelo simples facto do seu autor estar a mexer em material e com personagens que ele tão bem conhece. Por isso é que acho que Dogma e Jay and Silent Bob Strikes Back são tiros ao lado e Mallrats e, principalmente, Chasing Amy dois belos filmes que merecem todo o respeito da contra-cultura que representam e não merecem o ignorar da elite cinéfila que pouco quer saber do Askewverse onde todos os filmes de Smith se passam. É verdade que ele tem esse grande problema de parecer estar a divertir-se demais e ter profissionalismo a menos, juntar os seus amigos constantemente é muito giro mas pode sair o tiro pela culatra (a mulher de Smith é um pedaço de respeito, sim senhor, mas actriz é que não parece ser) e evita que ele se desenvolva como realizador, impede que aprenda a técnica deixando que os seus filmes pareçam saídos de um episódio especial de uma série de televisão, a montagem seja prosaica e a sua escolha de músicas para pontuar certas cenas ou desnecessária ou péssima.

Como disse guardo um especial carinho por Clerks. Não é preciso uma pessoa ter trabalhado numa loja de conveniência para se relacionar tanto com as personagens, justo dizer que tive muitas dessas conversas a tentar trabalhar para trabalhos de escola ou quando era suposto estar a estudar mas decidia sentar-me num qualquer sítio com uns quaisquer amigos a discutir mulheres, Star Wars e gente estúpida que tínhamos que encontrar. E esse filme era tudo para mim, ainda sou um daqueles que se ri quando vê o número 37 ou afirma best of both words quando a conversa descai para o hermafroditismo. Daí que sair agradecido desta sequela 12 anos depois fosse para mim tanto improvável como desejável. Tinha que ter um sentido, Dante e Randall tinham que atingir algum objectivo ou servir de ponto de viragem para as suas vidas mas ao mesmo tempo queria mais do mesmo, queria que eles pouco ou nada tivessem mudado nesta década passada e só sofressem de uma exclusão dentro do grupo etário porque toda a gente da época deles já avanço enquanto estes dois continuam resignados no mesmo sítio.
E não podia estar mais certo. Felizmente toda as minhas esperanças foram cumpridas e rapidamente pude juntar Clerks II não só à lista dos melhores filmes de Smith como provavelmente no topo da mesma. Foi difícil no início habituar-me ao mundo de Smith onde os actores tanto podem ser bons como muito maus e os diálogos tendem a repetir a mesma estrutura deixando, outra vez, a progressão dramática completamente estagnada. Mas a partir do momento em que Randall desbarata sobre a conotação racista ou não da expressão porch monkey que não precisei de mais, o espírito do original estava aqui com uma adição superior - Smith progrediu, não muito, continua a ser um fraco realizador, mas era como ver Clerks filmados por alguém com um mínimo de sabedoria técnica e estrutural. Mas de repente chegamos a meio do filme e Smith dá-nos um bombom que nunca pensei que fosse capaz, uma fabulosa sequência musical ao som dos Jacksons 5 arranca-nos da suspensão de descrédito mas liga toda a gente naquele espaço de tempo como se cena acabasse por ter mais importância no futuro e, surpresa, tem!

A história. Dante e Randall já não trabalham na mesma loja de conveniência que foi completamente destruída num incêndio. Em vez disso os dois mudam-se para um restaurante de uma cadeia de fast-food chamada Mooby's onde têm que passar os dias a fazer hambúrgueres e fritar batatas-fritas. Como no anterior a acção toda passa-se num único dia, o último de Dante antes de ir para a Flórida com a sua noiva onde se vai casar, viver e trabalhar num sítio "a sério". O restaurante esse é gerido pela bela Becky (Rosario Dawson) que vê em Dante muito mais por um grande amigo, e ainda há Elias, o novo geek viciado em Transformers e Senhor dos Anéis, bem comportado e bom cristão logo principal alvo para as blasfémias de Randall. E, claro, Jay e Silent Bob que sem loja de conveniência para poderem estar encostados à parede o dia inteiro a vender droga e não fazer nada mudam-se para o restaurante para continuar o mesmo de sempre.
Pouco ou nada mudou. Randall continua as mal-tratar os seus clientes e Dante continua dividido entre duas mulheres e a reclamar que está farto daquela vida de adolescente, que tem que voltar à sociedade. Mas mais importante que isso é a noção que Smith começa a estar desajustado com os seus sucessores no mundo geek. Já não se fala de trilogias do Lucas mas sim do Peter Jackson, já não se tem a liberdade adolescente dos belos tempos da América grunge mas agora são todos protegidos deste mundo devasso e ímpio. Smith trata os seus com respeito, certo que vomita as suas teorias e opiniões com a mesma raiva de sempre mas também aceita até certo ponto os novos tempos e tendências. A escolha de músicas prova que o próprio realizador/argumentista pouco sabe do que se passa no mundo agora, de Smashing Pumpkins a Soul Asylum só parece que aquele que antes era a voz de uma série de misfits americanos parou naquele tempo da sua contra-cultura. É triste mas só torna o filme ainda mais interessante. Se o primeiro era sobre Smith a trabalhar na loja (a mesma onde o filme foi filmado) e a falar com os seus amigos sobre tudo e nada, o segundo é sobre Smith admitir que foi ultrapassado pelos tempos.

Certas cenas são belíssimos primores. O já mencionado diálogo sobre racismo, a luta entre fãs da Guerra das Estrelas e fãs do Senhore dos Anéis e a também mencionada sequência musical. Mas aquela que fica mais na memória é perto do final do segundo acto quando Kevin parece mostrar mais coragem que aquela que tinha quando fez o primeiro. Num volte-face incrível o filme dá-nos um espectáculo de bestialismo (desculpem, erotica entre-espécies) quando todas as personagens se juntam num caos emocional avassalador. Ainda melhor é a força da sequência, de repente a tensão dramática é posta em segundo plano para que a mula e o seu dono possam fazer o seu trabalho.

Kevin Smith nunca será um excelente realizador nem um génio que os seus fãs tanto querem proclamar. Nunca será, aliás, mais do que um excelente escritor de diálogos com um grupo de amigos fabuloso e a maior sorte deste mundo. Mas que salta de alguns dos seus filmes é tão grande que não se pode ignorar, apesar de tudo ele gosta do que faz e o que faz é mais que aceitável, é agradável e nalguns casos, neste principalmente, magnífico! Imagino muitas das pessoas que o idolatram a acabar de ver Clerks II e largarem um simples obrigado por voltar a dar-nos uma fotocópia daquilo que sempre pensámos mas nunca tivemos coragem de dizer. Justiça seja-lhe feita, esta sequela começa e termina exactamente como qualquer fã do original sempre quis e isso só se deve ao olho clínico de Smith e pouco mais. Entristece-me saber que não voltarei a ver Randall e Dante de volta, mas por outro lado o final foi mais que conclusivo, está na hora de todos nós seguirmos também com as nossas vidas.

(última achega para o título português: "Nunca tantos fizeram tão pouco". Que escolha é esta? Que total indignação pelo primeiro filme que nem um título cativante foram capazes de dar, quanto mais relembrar que estamos na presença de uma sequela como não só o 2 do título original o diz como os créditos iniciais tão bem o fazem transparecer)

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